ARTIGO DE OPINIÃO
História, Humanidades e Flexibilidade Curricular

JOAQUIM BASTOS SERRA | Professor de História do Ensino Secundário, doutorado em História e investigador do CIDEHUS-UÉ

As possibilidades abertas pela entrada em vigor da designada lei da Autonomia e da Flexibilidade Curricular (Decreto-Lei n.º 55/2018, de 6 de julho) que, entre outras medidas, permite às escolas gerir 25% dos currículos, tem contribuído para que em diversos estabelecimentos de ensino se tenha assistido à redução da carga horária da disciplina de História e à consequente perda da sua importância relativa nos currículos. Algo que não é só lamentável, como extraordinariamente contraproducente. Num momento em que se assiste aos avanços dos populismos, das democracias iliberais, das “fake news”, do revisionismo dos factos históricos e quando continuamos a ter baixíssimos níveis de participação cívica, não parece sensato diminuir o peso de uma disciplina que tem um papel indiscutível na compreensão do mundo em que vivemos, na consciencialização dos problemas sociopolíticos e na formação cívica dos alunos.

A redução da carga horária da disciplina de História, que em alguns anos de escolaridade e em algumas escolas, se ficou pelos 90 minutos semanais, tem óbvios reflexos na forma de trabalhar com os alunos. Por muitas opções que se façam no sentido da gestão parcimoniosa dos conteúdos, existe uma insanável contradição entre a extensão dos programas e os poucos tempos letivos para os lecionar. Como é evidente, esse contrarrelógio em que se tornaram as aulas de História não permite aos professores outra coisa se não organizar conteúdos e elaborar quadros síntese para cumprir os programas e garantir que se façam as aprendizagens essenciais. Desta forma, reduzem-se as amplas potencialidades formativas da disciplina de História, impedindo (ou reduzindo ao mínimo) o uso das metodologias que lhe são próprias, que passam pela análise documental, pelo trabalho de pesquisa, pela promoção da reflexão e da discussão, que trazem ganhos a diferentes níveis na formação global dos alunos.

Refira-se que as consequências pedagógicas deste novo espartilhar da disciplina entra em clara contradição com o que se encontra expresso no próprio decreto-lei da Flexibilidade, que prevê a implementação de metodologias de trabalho que permitam, entre outras, a promoção de capacidades de pesquisa, de relação e de análise, assim como o domínio de técnicas de exposição e de argumentação. Não parece possível que algo do género se possa fazer quando, no 3.º ciclo, por exemplo, a Civilização Grega tem que ser lecionada em 3 ou 4 aulas e os Fascismos e as Guerras Mundiais em 5 ou 6. Quando de se tem de “dar a História a correr”, não há espaço para nenhum outro tipo de trabalho que não seja “o decora e repete”, que é, precisamente, o que a nova legislação pretensamente pretende evitar. A redução da carga horária não parece também trazer nada de benéfico para a melhoria dos resultados numa disciplina que se encontra entre as que têm piores classificações nos exames nacionais de 12.º ano. Em 2017-18, a disciplina de História A teve uma média final de 95 pontos (em 200) e a de História da Cultura e das Artes 96 pontos, sendo as duas últimas no ranking das classificações. Não se vê em que medida é que este espartilhar da disciplina pode contribuir para levar a cabo um trabalho mais consistente, que seria aconselhável face aos resultados acima descritos.

Não parece também que a disciplina de Cidadania e Desenvolvimento, que entretanto passou a fazer parte dos currículos do 2.º e do 3.º ciclo, possa compensar ou substituir as aprendizagens feitas nas aulas de História. É, aliás, com alguma perplexidade que se vê a criação de mais uma disciplina, que vem sobrecarregar um currículo já de si pesado, valendo a pena relembrar que o 3.º ciclo passa, assim, a contar com 12 ou 13 disciplinas. Não negando a importância da cidadania e da formação cívica, não parece que a promoção desses valores tenha necessariamente que se traduzir na criação de uma nova disciplina, sobretudo quando os objetivos que lhe estão associados são inerentes aos programas e se vivem nos quotidianos das escolas. Não é preciso ser-se muito versado em questões de educação, para se perceber que a hora da cidadania (se for semestral ou meia hora se for anual) só pode ser algo forçado e inconsequente.

Importa também frisar que a perda de importância curricular da História entra, ainda, em clara contradição com os princípios expressos nos documentos orientadores, nomeadamente no Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória (Despacho n.º 6478/2017, 26 de julho), em que se enaltece a formação humanista e os valores que lhe estão associados. Seria, por isso, de supor que as disciplinas de Humanidades, como é o caso da História, não fossem de novo as principais vítimas das mudanças curriculares. Dizemo-lo, assim, porque a perda relativa da sua importância não é algo novo, nem sequer algo que diga apenas respeito à realidade portuguesa, radicando em múltiplas causas que não importa agora analisar. Mas, no caso do nosso país, a desvalorização das Humanidades e das Ciências Sociais tem-se concretizado, de uma forma muito clara, ao longo de diversas reformas curriculares realizadas nas últimas décadas, em que se foi assistindo a uma progressiva redução da carga horária de disciplinas como História, Geografia ou Filosofia e, concomitantemente, à redução do leque de disciplinas optativas de Humanidades e das Ciências Sociais. A desvalorização da componente de formação cultural e humanista atinge, em alguns casos, níveis próximos do absurdo, chegando-se ao ponto de a disciplina de História e Cultura das Artes não ser obrigatória no curso secundário de Artes Visuais.   

A celeuma que se levantou em torno da disciplina de História, valendo por si mesma, deixa também evidentes os limites e as incoerências de medidas legislativas lançadas de forma apressada, mal avaliadas e debilmente acompanhadas com os resultados que se adivinham. Os riscos de desvirtuamento e de enviesamento das (pretensamente) boas intenções das propostas legislativas aumenta, quando, como é o caso, o quadro legal introduz mudança de paradigmas e se propõe fazer alterações profundas nas formas de organização e de funcionamento das escolas, que chocam com as realidades que nelas se vivem. No caso concreto da Autonomia e Flexibilidade Curricular, vale a pena questionarmo-nos sobre se as escolas estão de facto preparadas para tomar decisões sob o ponto de vista dos currículos. Uma matéria técnica e pedagogicamente muito exigente que, se for mal executada, compromete seriamente as aprendizagens e a formação dos alunos, havendo ainda que saber como é que a flexibilidade se compatibiliza com a realização de Exames Nacionais. Tendo em atenção o quadro de funcionamento das nossas escolas, os riscos de se construírem currículos incoerentes e desequilibrados são imensos, sabendo nós que, na voracidade do dia-a-dia dos estabelecimentos de ensino, muitas decisões são tomadas a partir de constrangimentos vários, materiais, humanos e muitos outros, que podem fazer com que o currículo se oriente num determinado sentido por motivos insondáveis.

Depois de se andar anos a defender a necessidade de dar estabilidade às escolas e de consensualizar reformas, o que choca em tudo isto é confrontarmo-nos, de novo, com mais uma vaga de mudanças (expressas no Decreto-Lei da Autonomia e da Flexibilidade Curricular, mas também no que regulamenta a Educação Inclusiva, Decreto-Lei n.º 54/2018 de 6 de julho). Note-se que estamos a falar de propostas de alguma radicalidade, eivadas de um certo espírito de experimentalismo pedagógico, que em muitos aspetos são de difícil (ou impossível) implementação e de valor duvidoso. Trata-se, contudo, de uma reforma não assumida, já que o Ministério, com a justificação de conceder maior autonomia às escolas, lhes passou a responsabilidade de implementar, num curto espaço de tempo, um vasto conjunto de medidas e de alterações substanciais na sua organização e no seu funcionamento, sem que tenham sido asseguradas as condições mínimas para as levar por diante com rigor. Uma maneira de fazer as coisas que, como o caso da construção dos currículos deixa evidente, acarreta riscos que podem ter efeitos graves na formação dos alunos e que pouco favorece a qualidade da escola pública.

Published in 03.04.2019